3.6.22

Corredenção: Maria e a Cátedra Petrina

Muito foi posto, porém, pouco foi tomado na postagem Maria, Corredentora? Leia Até o Fim! Mas era esperado, incluindo não lerem até o fim. Então, como o ofício do Enquirídio é o diálogo à identidade católica, resolveu-se esmiuçar o dogma da Santa Igreja e o problema avistado no paralelismo pseudo-mariano.
São Pedro Chorando Diante da Virgem
Giovanni Francesco Barbieri. São Pedro Chorando Diante da Virgem.
1. Inicialmente, cumpre salientar um problema linguístico: quando utilizam a palavra “medianeira”, referem-se necessariamente a “mediação”, donde, segundo a Constituição Dogmática Lumen Gentium, jamais poderia ser totalmente em si ser compreendida por “intermédio”, mas que por “cooperação”, funda-se, mediando Maria totalmente se observada na figura de Nosso Senhor – fundida, pois, como é dito, será sempre o único mediador, intermediando diretamente com o Pai, “pois há só um Deus e um só mediador entre Deus e os homens, um homem, Cristo Jesus, que se deu em resgate por todos.” (1Tm 2, 5-6). Assim é que o influxo salutar de Nossa Senhora não interfere; apenas mostra sua eficácia. Noutros termos, aproximar-se da Mãe Santíssima como quem chega perto de Jesus Cristo é a razão da fusão sustentada no Concílio Vaticano II, sendo plena a presença do Espírito Santo ao iluminar os corações dos bispos naquela reunião conciliar a respeito de pedidos titulares que queriam atribuir à Mãe de Deus, porém, talvez sem precisão, uma vez que tal mistério, conforme colocado, jamais quisesse remover ou adicionar senão a digna legitimidade desde o início dos séculos. Agora, sobre esta parte, permita-se perceber algumas preocupações.
2. Todos os cristãos, católicos sobretudo, enfrentarão o problema do intelectualismo no século XXI, que não passa de um iluminismo 2.0 disfarçado, donde a filosofia poderia subtrair o espaço da teologia em cumprimento de determinadas ideologias, como se vê na interpretação marxista do Evangelho, inaugurada na famigerada “teologia da libertação” e lamentáveis derivações, mas não exclusivamente, uma vez que também existem correntes filosóficas que buscaram em místicos do islã as razões pelas quais acham que conseguem melhor conduzir a Santa Igreja em perceptível desavença com Papa Francisco – infelizmente, como se pode notar em algumas associações ou organizações de leigos e também no fenômeno que vem ganhando espaço no mundo, conforme já denunciado em Bispo Sedevacantista no Brasil? Os ideólogos de Karl Marx não são difíceis de identificar: sempre trocam os milagres por feitos sociais, exempli gratia, multiplicação dos pães por repartição. Igualmente, porém, talvez menos evidentes, procedem aqueles que desvinculam a Cátedra Petrina a depender da conveniência intelectual, geralmente desembocada em interesses politiqueiros ou meramente umbilicais. Nesse ponto, consignou-se na Lumen Gentium evitar induzir ao erro os irmãos separados ou quaisquer outras pessoas, quanto à verdadeira doutrina da Igreja Católica, consoante o tópico sobre as normas pastorais do quarto capítulo daquela Constituição Dogmática.

3. As intenções do Concílio Vaticano II foram expressas quanto a questão mariana, sobretudo pelas investigações teológicas não trazerem uma elucidação definitiva, sendo certo as opiniões que são livremente propostas nas escolas católicas acerca daquela que ocupa o lugar mais alto depois de Jesus Cristo e o mais perto de nossa gente na Santa Igreja. Mesmo São Luís Maria de Grignion de Montfort tem uma devoção por Nossa Senhora que talvez nenhuma outra pudesse se dignar em comparação, embora do ponto de vista meramente cognitivo, colocações como “todas as coisas, inclusive Maria, estão sujeitas ao poder de Deus. Todas as coisas, inclusive Deus, estão sujeitas ao poder da Virgem”, conforme consta no ponto 76 do tratado que escrevera no século XVIII antes de morrer, possam parecer intrigantes, mas tão somente pelo afervoramento devocional, donde ele mesmo explica “se as pessoas não estão dispostas a se dizerem escravas de Maria, de que isso importa? Que elas se tornem e se chamem a si mesmas de escravas de Jesus Cristo, pois isto é o mesmo que ser um escravo de Maria, uma vez que Jesus é o fruto e a glória de Maria”. Claro: talvez achem o santo doido, embora bastasse retornar ao primeiro ponto desta postagem para novamente observarem a plenitude do mistério da fusão na cooperação redentora. Existem outros pormenores que podem ser estudados, apesar do que tem na Lumen Gnetium já ser de abundante iluminação.

4. Merece, outrossim, algumas ponderações quando São Luís de Maria de Grignion de Montfort utiliza a expressão “escravos de Maria”, donde um ponto é a dissonância ao defender a existência de servos próprios da Rainha em honra da glória do Rei, motivo pelo qual questiona “seria possível acreditarmos que Jesus, o melhor de todos os filhos, que compartilhou Seu poder com Sua Santíssima Mãe, Se haveria de ressentir de ela ter seus próprios escravos? Teria Ele menos estima por Sua Mãe do que Assuero tinha por Ester, ou Salomão por Betsabé?” – evidentemente que não, mas tal maneira de argumentar, especialmente nos tempos de agora, dos quais não poderia jamais adivinhar, pode ser tida não pela mística cristã, mas por uma vertente mais neopagã, donde é certo sua completa abominação por aqueles que são infiéis a Santa Igreja ao protestarem ou mesmo cismaram, embora seja lógico buscar entender que por escravidão o santo se refira a condição de dependência eterna do cristão em Nosso Senhor e cristologicamente em Nossa Senhora por uma fusão. Historicamente, abordar a escravidão, mesmo que dentro de um argumento de santidade, sobretudo ao preceder a maior época de abolições de escravaturas no mundo, certamente causaria antipatia, embora a verdade esteja evidente no ponto 77 do Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, donde se lê “antes de sermos batizados éramos os escravos do diabo, mas o batismo fez de nós os escravos de Jesus (Rm 6, 22). Ao cristão só lhe é dado ser um escravo do diabo ou um escravo de Cristo”, adicionando em seguida uma espécie de ressalva afirmando que aquilo que diz absolutamente sobre Nosso Senhor, relativamente diz por Nossa Senhora – nada mais claro do que as conclusões do Concílio Vaticano II acerca da mariologia empreendida pelos teólogos católicos, que tem por uma liberdade e inspiração argumentativa uma boa contribuição, mas não terminativa, como será vista.
Contudo, quando essa incidência é escanteada, ou seja, quando Nosso Senhor é ignorado, notadamente a unidade vai voltando à dualidade, descendo o sal enquanto sobe a água, motivo pelo qual mesmo o casamento só existe ao existir, perfeita ou imperfeitamente, presença salvífica.
5. Se há fusão, jamais haveria de se falar em separação. Também não tem relação alguma com unir, posto que em uma união as coisas se ajuntam, porém, heterogeneamente, mesmo que sua aparência superficial seja homogênea, como em um casamento. Quando o casal é unido em matrimônio, Deus mistura os noivos como se fossem sal e água. Enquanto estiverem misturados pela ação do Espírito Santo em completa entrega aos desígnios de Jesus Cristo, continuarão sendo um só corpo, pois n’Ele está este agito, que faz com que substâncias pareçam tão somente uma. Contudo, quando essa incidência é escanteada, ou seja, quando Nosso Senhor é ignorado, notadamente a unidade vai voltando à dualidade, descendo o sal enquanto sobe a água, motivo pelo qual mesmo o casamento só existe ao existir, perfeita ou imperfeitamente, presença salvífica. Assim é que o filho é o milagre da existência, donde o pai e a mãe, substancialmente, fundem-se no mistério da geração, pois quem olha na prole vê os genitores sem que ali estejam, mesmo para aqueles que não herdaram as feições externas, aparentes, dadas pelos genes, mas sim internas, próprias do amor de quem as transmitiu mesmo sem ter gerado. Assim sendo, aquilo que foi fundido é inseparável, como numa liga metálica, donde a guarda de um sabre recobre sua lâmina sem distinguir quais metais a compõe. Empunhá-la significa se servir de aço na condição fundida do ferro e carbono. Portanto, aquele que devota sua fé por Maria tem devoção por Nosso Senhor. Quem é servo de um, indistintamente o é também de outro, inexistindo, como se sabe, divisão – Amém!

6. Quando o Papa Francisco, durante a homilia de 12 de dezembro de 2017, reafirma o caráter discipular de Maria ao lembrar que ela jamais se apresentou como corredentora, encerram-se as questões a respeito da corredenção dada através do dogma da infalibilidade papal advinda do Concílio Vaticano I, consoante a Constituição Dogmática Pastor Aeternus, especialmente quando pronuncia o pontífice ex cathedra, ou seja, exercendo sua função na Cátedra Petrina ao definir uma doutrina de fé ou moral, incluindo sua imutabilidade. Assim é que o Santo Padre encerrou o problema titular homiliando, explicando não ser necessário dogmatizar por envolvimento em disparates aquilo que bem declarou por Nossa Senhora, incluindo outras formas de referi-la, embora tal expressão sequer conste em diversos documentos importantes da Igreja Católica, como se verá adiante.
7. Antes de prosseguir, permita-se notar a breve constatação que se faz ao verificar até mesmo a maneira cultural de se referir a Mãe de Deus, qual seja, chamando-a Nossa Senhora, através dos documentos da Santa Igreja. Apenas no Concílio Vaticano II, nenhuma ocorrência há ao buscar nas Constituições Dogmáticas Dei Verbum, Lumen Gentium, Sacrosanctum Concilium, Gaudium et Spes, também inexistente nas declarações, muito menos nos decretos – impressiona até mesmo quem publica neste Enquirídio, donde a noção culturalmente assimilada passaria por uma necessária meditação na ausência da já referenciada homilia do Santo Padre – que por providência a pronunciou em boníssimo momento. Buscando no Catecismo da Igreja Católica, somente uma aparição acontece, mesmo assim, citando o II Concílio de Nicéia, ocorrido em 787 às resoluções iconoclastas. Se um cristão buscasse na Bíblia Sagrada ou em qualquer outro texto, poderia sofrer sem encontrar tal maneira de referi-la, motivo pelo qual somente na Tradição Católica é possível ter absoluta certeza a respeito da fé em Nosso Senhor, redentor absoluto, mesmo quando relativamente fundido à imagem de sua Mãe Santíssima em honra única e indivisível.
8. Agora se permita entender a perturbação decorrente do culto duplo e dividido à Nossa Senhora. Quando a redenção é aclamada em Maria, fundida em Jesus Cristo, trata-se de um só mistério, podendo-se assim dizer. Porém, através da corredenção, confundem-se as pessoas que não necessariamente vão compreender a expressão de maneira correta, assim como em cooperadora, donde render no sentido de salvar não abriga uma outra salvação justaposta, mas tão somente uma com exclusividade canônica, dogmática, doutrinal. Existe em um Boeing 747 copilotos, ambos capazes de operarem o aparelho, assim como dois autores podem em coautoria produzirem um livro único, embora a ausência de um já invalide a produção, tornando-a incompleta. No trabalho salvífico da humanidade, somente o Filho de Deus realiza tal operação, embora na realização, Sua Mãe coopera, igualmente os apóstolos, embora nela haja mais cooperação, especialmente por ter gerado o Menino Jesus, conforme hierarquiza o Concílio Vaticano II. Porém, existe uma corrente catolicista que, não compreendendo o alcance do Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem ou diante de pretensões particulares, sendo uma hipótese realmente plausível, tenta excluir o magistério da Santa Igreja, atacando paulatinamente os pontífices desde São João XXIII (papa que abriu as obras conciliares em 1962), incluindo seus documentos e praticamente qualquer coisa relacionada, valendo lembrar o problema da Missa Tridentina e a disputa dos lefebvristas, que nem deveriam ser mencionadas, mas que acabam virando pretextos para negação da Santa Sé. Além disso, salientou-se aqui no blog outra vertente filosófica, findada em si mesma em um neoclassicismo que permite até mesmo a influência oriental, contudo, subversivamente travestida de perenialismo esotérico.
9. No perenialismo esotérico o “sagrado feminino” é colocado em primazia. Talvez um cristão possa achar bonito tal conceito, pois pode, então, utilizar-se da filosofia perene no intuito de elevar Maria e tudo mais. Acontece que Nossa Senhora não poderia jamais ser elevada por uma vontade humana, mas tão somente por Ele, Nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus Pai Todo-Poderoso – conforme ocorreu na assunção. Então, sabendo que tal maneira de pensar só afasta o católico da Santa Igreja, donde Theotókos exerce domínio maternal integral e incontestável, restaria entender o motivo pelo qual insistem algumas associações ou organizações de leigos na idolatria pseudo-mariana, sabendo que bebem em fontes de patente misticismo, gnosticismo, esoterismo e companhia limitada até que possam se engasgar. Somente na trinca de pensadores que referenciam direta ou indiretamente (especialmente por seu expoente mais contemporâneo, porém, falecido), quais sejam, Guénon, Schuon, al-Alawi, entende-se quão distantes do catolicismo se posicionam, uma vez que nesses nomes o que é sabido é a aproximação ao islamismo ou mesmo ao hinduísmo por questões de referências cruzadas ou paralelas, importando mesmo é que a atenção dos adeptos esteja impregnada de qualquer pirotecnia hermética que por ela deixem ou ignorem o magistério, o dogma, a doutrina da Igreja Católica numa espécie de “freestyle” religioso. Valeria ressaltar que nas concepções aventadas, haveria no culto hindu a origem da ordem à unidade, estando no islã as práticas sufistas mais fidedignas à preservação desse princípio universal, donde a Santíssima Trindade não seria outra coisa senão uma reprodução sinônima daquilo que também haveria em Brahmâ, Vishnu e Shiva, incluindo Shakti, que num dos segmentos hinduístas denominado Shaktismo, seria uma deusa digna do panteão ou mesmo a própria essência divina ao lado de Brahma (como união daqueles três deuses), assim como para quem segue essas ideias, sendo quase certo o ímpeto de elevar a bem-aventurada ao nível de divindade – daí vem uma quantidade assombrosa de tentativas pirotécnicas para divinizar a Mãe de Deus no patamar de corredentora. É que o símbolo, quando pervertido, seculariza-se ao pondo de qualquer um aderir de qualquer maneira – São Luís Maria Grignion de Monfort teria um treco!

10. Escandalizara-se ao perceberem nas palavras do Santo Padre a afirmação de que não se tem por Maria uma corredentora, consoante uma das homilias de 2017, muito menos a necessidade de se criar um dogma. Quatro anos depois, Papa Francisco, certamente por demandas da Igreja Católica, manifestada pelos membros ordenados e leigos, retornou ao assunto em catequese, ou seja, ensinado de fato sobre as coisas da fé. Assim é que o pontífice na Audiência Geral de 2021 reafirmou o conteúdo homiliado ao explicar que somente Jesus Cristo é redentor e o caráter mariano que envolve nossa gente através da confiança d’Ele em Sua Mãe, mas não como uma deusa, embora compreendendo as titulações que lhes são atribuídas por imensa devoção, segundo suas próprias palavras: “é verdade que a piedade cristã sempre lhe atribui títulos bonitos, como um filho à mãe: quantas palavras bonitas um filho dirige à sua mãe, a quem ama! Mas tenhamos cuidado: as belas palavras que a Igreja e os Santos dirigem a Maria em nada diminuem a singularidade redentora de Cristo. Ele é o único Redentor. São expressões de amor, como de um filho à mãe, às vezes exageradas. Contudo, como sabemos, o amor leva-nos sempre a fazer coisas exageradas, mas com amor”.
11. Assim é que a devoção mariana de sacerdotes como Padre Paulo Ricardo, que sim, conviveu com uma pessoa iniciada no misticismo, gnosticismo e esoterismo de Guénon, Schuon, al-Alawi, mas que não tem qualquer inclinação a essas coisas, precisa ser percebida, como quem por sua Mãe nutre imenso amor – exagerado, como disse o Santo Padre. Mesmo que ele diga ser Theotókos corredentora em algumas homilias, evidentemente que faz cristologicamente. Depois da catequese de Papa Francisco, continuar com expressões que não estejam em comunhão com aquilo que ensina a Cátedra Petrina talvez não condiga, particularmente, com uma desobediência, como se sabe, mas por outros de nossa gente que podem ser confundidos, sobretudo aqueles que passaram por conversão, melhor mesmo é evitar. Maria, simplesmente, é a majestade por excelência.

12. Também é conforme a catequese do Papa Francisco que São Luís Maria de Grignion de Montfort, devotadíssimo de Nossa Senhora, precisa ter seu exagero acolhido, pois toda ideia de servir Maria no intuito de melhor se colocar como discípulo para Nosso Senhor, consoante seu Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, não tem por intenção divinizar Nossa Senhora como se deusa fosse, mas tão somente, sabendo que ela é a Mãe da Igreja Católica, apresentar um método de se praticar seu exemplo de maneira mais próxima possível, fundida em Jesus Cristo. Assim sendo, mesmo que queiram tentar contra o Santo Padre, achando que ele não tem validade como sucessor da Cátedra Petrina, negando-o e maldizendo aquilo que ensina, porém, oferecendo em paralelo uma catequização diferenciada, isenta dos dogmas, incluindo uma filosofia findada em si mesma, jamais conseguirão deturpar as verdades que são colocadas não por uma pessoa qualquer, mas por incidência do Espírito Santo naqueles que são chamados por Ele aos empreendimentos realizados para glória de Deus.
    Para referenciar esta postagem:
ROCHA, Pedro. Corredenção: Maria e a Cátedra Petrina. Enquirídio. Maceió, 03 jun. 2022. Disponível em https://www.enquiridio.org/2022/06/corredencao-maria-e-catedra-petrina.html.

Postar um comentário

Botão do WhatsApp compatível apenas em dispositivos móveis

Digite sua pesquisa abaixo