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Prosper Marilhat. Ruínas da Mesquita Al-Hakim no Cairo. |
2. No nominalismo, o que é substancial não poderia ser percebido, apenas o que é acidental. Noutros termos, um embrião não corresponderia ao bebê, pois tais acidentes não são idênticos, portanto, relativos à percepção de quem vê, embora sejam ambos substancialmente seres humanos em estágios distintos da existência.
3. Deste jeito, embrião e bebê, embora essencialmente humanos, através do nominalismo, dependerão da sensibilidade de quem os percebe. Só que as relativizações, geralmente dependentes do sentimento de cada qual na operação direta ou indireta de um pensamento ou mesmo atitude, não são próprias desta ideologia somente.
4. Antes de seguir adiante, precisa-se mensurar a decorrência do relativismo para que seja possível entender sua presença em culturas distintas, pois, pelo simples critério da anterioridade, muçulmanos já se mostravam mais nominalista do que os europeus com Ockham, ao menos 350 anos antes, através de Abu Hassan al-Ash’ari (873-935).
Assim sendo, estes muçulmanos creem numa divindade criadora e destruidora, que faz isso a todo instante, somente para enaltecer que tal independe da causalidade, revelando que não interessa as substâncias se absolutamente tudo é mero acidente da vontade divina, posta em prática de maneira a somente recriar o momento seguinte da existência de algo se assim quiser.5. Aliás, alguns fatos, primeiramente, revelam que São Tomás de Aquino (1225-1274) conhecia a doutrina de al-Ash’ria, como se nota ao tratar do “erro dos que acreditam que todas as coisas são dirigidas só pela vontade, sem interferência da razão”, explicando que “Tal é o erro dos mutacalimim [defensores da Lei dos Mouros], entre os Sarracenos, que, segundo Rabi Moisés, afirmavam não haver diferença alguma em o fogo aquecer ou esfriar, senão porque Deus o quer.” (Suma Contra os Gentios, III, XCVIII). Ideia que exclui causa e efeito — que vai ser explorada mais adiante — visando refutar o atomismo de Tito Lucrécio Caro (99-55 a.C.), donde nada no mundo derivaria da intenção divina, mas de uma aleatoriedade, motivo pelo qual, para aquele momento do pensamento islâmico, qualquer coisa existente depende só de Deus para que exista. Na edição prefaciada por Roger Scruton (1944-2020) de “A Mentalidade Muçulmana”, Robert Reilly, citando “Islam and the World” de Malise Ruthven, transcreve “Os asharitas [relativo ao al-Ash’ria] racionalizavam a onipotência de Deus dentro de uma teoria atomista da criação, segundo a qual o mundo era feito de pontos discretos no espaço e no tempo, cuja única conexão era a vontade de Deus, a qual os recriava por inteiro a cada instante”, complementando que, “Por exemplo, existe uma coleção de átomos que é uma planta. Essa planta permanece planta enquanto você lê esta linha porque tem natureza de planta, ou por que Alá quer que ela permaneça uma planta de um instante a outro? Os asharitas sustentavam que ela só é uma planta agora. A planta permanecer planta depende da vontade de Alá, e se alguém afirma que ela deve permanecer planta porque tem natureza de planta, isso é shirk — blasfêmia (na forma de politeísmo, ou ‘associação de outros com Alá’)”. Assim sendo, estes muçulmanos creem numa divindade criadora e destruidora, que faz isso a todo instante, somente para enaltecer que tal independe da causalidade, revelando que não interessa as substâncias se absolutamente tudo é mero acidente da vontade divina, posta em prática de maneira a somente recriar o momento seguinte da existência de algo se assim quiser — o que é insano, mas não sem inteligência.
Não à toa Reilly relaciona o asharismo à teologia do “manda quem pode”, donde a força predominante não seria outra coisa além da prova que Alá quer isso, motivo pelo qual toda expansão islâmica se dá através da imposição, antes só pelas armas, mas, agora, também pela guerra cultural.6. Se os asharitas, provenientes da escola de pensamento inaugurada por al-Ash’ria em oposição constante aos matuzalitas, idealizaram uma divindade que dispensa a racionalidade, posto que tudo deve ser inquestionavelmente colocado como sendo do querer divino, o que é dito do Corão pela boca de um muçulmano é a vontade de quem, então? Negar tal livro na totalidade é apostasia punida com a morte, donde nada nele, conforme seu escritor, poderá ser discutido, mas tão somente cumprido. Fórmula condenada pelo Santo Afonso de Ligório (1696-1787) em “História das Heresias e suas Refutações” ao dizer que “esse foi um achado muito eficaz do Demônio para fazer e continuar fazendo um perpétuo massacre de muitas pobres almas, para que as coitadas vivessem sempre na ignorância e, assim, permanecessem para sempre cegas e perdidas”. Não à toa Reilly relaciona o asharismo à teologia do “manda quem pode”, donde a força predominante não seria outra coisa além da prova que Alá quer isso, motivo pelo qual toda expansão islâmica se dá através da imposição, antes só pelas armas, mas, agora, também pela guerra cultural. E o nominalismo que supostamente estaria relacionado?
Afinal, depois da última expansão islâmica, durante o Califado Omíada (661-750), estiveram muito próximos da China e Índia, numa aponta, enquanto conquistavam, na outra, maior parte da Península Ibérica, depois de dominarem totalmente a porção mais ao norte do continente africano.7. Então, Reilly traz uma posição categórica do filósofo iraniano Abdulkarim Soroush ao afirmar que ele considera os asharitas como nominalistas do islã. As consequências disso é a exclusão do próprio livre-arbítrio, mas que, perguntando-se aos adeptos do asharismo moderno, notadamente os sunitas (aqueles que prescrevem a pena de morte no caso de apostasia), se também o mal é vontade dessa divindade, colocam-na apática à moral ou mesmo aos homens, certamente, uma vez que, lembrando que por tal se realiza a criação e a destruição constantemente, no intuito de excluir a relação de causa e efeito, bastando o querer divino, questionar-se-ia se compreendem que tais concepções não parecem com aquelas, advindas da vertente religiosa taoísta, donde o Tao é indiferente à humanidade, porém, antes disso, se os deuses hindus Brahma, Vishnu e Shiva não inspiraram o asharismo no sentido de compreenderem a criação, manutenção e destruição do mundo, respectivamente. Afinal, depois da última expansão islâmica, durante o Califado Omíada (661-750), estiveram muito próximos da China e Índia, numa aponta, enquanto conquistavam, na outra, maior parte da Península Ibérica, depois de dominarem totalmente a porção mais ao norte do continente africano. Portanto, as ideias de um relativismo europeu evidenciado por Ockham, donde os acidentes bastariam no intuito de se excluir as substâncias, sobretudo o acesso das verdades universais, parece não somente semelhantes à mentalidade islâmica predominante, como notadamente fizeram com que adeptos do nominalismo no ocidente se fechassem intelectualmente, assim como seus homônimos do médio oriente, embora estes já se encontrassem por lá, no que atualmente é Portugal e Espanha, cerca de 350 anos antes — tempo suficiente para toda essa coisa se desenvolver e influenciar a Europa da Alta à Baixa Idade Média.
De um jeito ou de outro, eram todos praticantes de misticismo, donde, dentre suas nuances, pode-se destacar como principal característica a percepção pessoal do ser em relação as forças e entes sobrenaturais, donde o “eu” é capaz por si só das operações, diretas e indiretas, conscientes ou inconscientes, voltadas ao relacionamento com uma divindade, que não poderia ser aquele mesmo dentre os católicos, qual seja, Jesus Cristo, uma vez que, dentre todos estes, alguns sacramentos foram discricionariamente aceitos e praticados, muito embora imperfeitamente, descartando-se os demais.8. Essa ideia contra a razão culminou no período da Renascença, pré e pós também, naquilo que se tem por fideísmo, mas não sem que avançasse o misticismo pela influência asharita de Abu Hamid Muhammad Al-Ghazali (1058-1111) em um novo modo de sunismo, conforme disposto brevemente em O Sufismo Irracional de Al-Ghazali — e aqui é que o problema é agravado, pois, embora Ockham possa ter intuído isso tudo que foi chamado por nominalismo, ao certo os renascentistas obtiveram conclusões de outras fontes, especialmente as que se coadunavam com concepções mais apropriadas ao misticismo que ascendia de maneira oculta desde os tempos de quando os Mouros (muçulmanos) ocupavam o que é atualmente Portugal e Espanha, passando pelo Sacro Império Romano-Germânico e indo à França e Inglaterra, mas não necessariamente nesta sequência. Do ponto de vista em que as colocações nominalistas promoveram heresias, cismas e apostasias, além de todas as blasfêmias provenientes de um pensamento anticristão por terminar negando a Santíssima Trindade ou mesmo a divindade de Jesus Cristo, assim como tantas outras coisas, problemas dessa natureza surgiram ao longo do tempo, como é visto nas seitas que propagavam o bogomilismo, valdismo e catarismo, todos mais ou menos no final da Alta Idade Média (séc. X) e começo da Baixa Idade Média (séc. XI) e provavelmente decorrentes do paulicianismo, que bem antes disso, entre 650 e 872, desenvolveram-se na Armênia. Desses quatro movimentos, os paulicianos e bogomilos se encontram atualmente em comunhão com a Igreja Católica, enquanto os catáros levaram suas práticas nocivas às últimas consequências, motivo pelo qual foram extintos quase totalmente na Cruzada Albigense (1209-1244), sobrando os valdenses, existentes até hoje, mas enquanto vertente protestante. De um jeito ou de outro, eram todos praticantes de misticismo, donde, dentre suas nuances, pode-se destacar como principal característica a percepção pessoal do ser em relação as forças e entes sobrenaturais, donde o “eu” é capaz por si só das operações, diretas e indiretas, conscientes ou inconscientes, voltadas ao relacionamento com uma divindade, que não poderia ser aquele mesmo dentre os católicos, qual seja, Jesus Cristo, uma vez que, dentre todos estes, alguns sacramentos foram discricionariamente aceitos e praticados, muito embora imperfeitamente, descartando-se os demais. Alguns admitiam a Eucaristia, enquanto rejeitavam a Confissão, geralmente não criando nenhuma oposição ao Batismo, mas que, sobre a Confirmação, Ordem, Unção dos Enfermos e Matrimônio, tornaram-se indiferentes ou realmente fizeram oposição. Ao certo, para eles, todo cristianismo dependia do fideísmo que permitia certas relativizações em oposição à Tradição, Magistério e Sagrada Escritura da Santa Igreja. Equivocar-se-ia quem achasse que não influenciaram a Europa ao ponto de gerarem a descrença necessária para concepções diversificadas pudessem atrair quem já tinha algum ímpeto contra a doutrina de Nosso Senhor, assim como os dogmas da fé. Não à toa é possível observar a propagação do ocultismo, esoterismo, hermetismo, cada qual segundo sua maneira, porém, imbuídos de flagrantes metafísicas islâmicas ou semíticas (incluindo a cabala judaica), para todo efeito, até que culminassem no relativismo necessário à subversão do ocidente, muito menos na forma de restrição ao acesso de verdades universais, uma vez que, cada qual, agora, poderia ter ou ser seu próprio universo particular, fazendo com que aquele fechamento intelectual observado no asharismo se espalhasse, como se vê, no mundo inteiro, seja pelo nome de New Age, Woke e Cia. Ltda. Diante dessas subculturas que apareceram nos países de povos fideístas, como os EUA, responsável por abrigar várias segmentações heréticas que ainda se dizem cristãs, notadamente, assim como entre os franceses, alemães, holandeses, ingleses, as percepções das realidades sensíveis ou somente o reconhecimento dos acidentes em detrimento das substâncias, comprometem a intelectualidade humana, tornando-a semelhante à irracionalidade dos animais, donde a razão, exceto para coisas palpáveis e prazerosas (embora possam se dar no uso da lógica, apenas), parece ser altamente dispensável se dela emergir qualquer racionalidade que contemple o que é moral e, disso, gere-se um peso no que resta da consciência. Se nada é certo e tudo depende da sensibilidade individual, impera uma “ditadura do relativismo”, como disse numa homilia o então Cardeal Joseph Ratzinger: “Enquanto o relativismo, isto é, deixar-se levar ‘aqui e além por qualquer vento de doutrina’, aparece como a única atitude à altura dos tempos hodiernos, vai-se constituindo uma ditadura do relativismo que nada reconhece como definitivo e que deixa como última medida apenas o próprio eu e as suas vontade”. 9. Entenda: não é que o nominalismo de Ockham não perturbou a Europa e resto do mundo depois; significa apenas que aquelas ideias não eram necessariamente próprias daquele franciscano, especialmente por movimentos diversos terem surgido em contextos anteriores, concomitantes com ideologias islâmicas mais estabelecidas. Para referenciar esta postagem: ROCHA, Pedro. Asharismo Nominalista. Enquirídio. Maceió, 02 Mar. 2025. Disponível em https://www.enquiridio.org/2025/03/asharismo-nominalista.html.
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