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Arthur Fitzwilliam Tait. Realidade. |
2. Intriga, sobretudo, que ele declare numa mesma linha de raciocínio algo, de fato, verossímil, enquanto expõe argumentos contundentes que não são outra coisa senão a certeza daquilo que foi concluído pelo personagem. Entretanto, como se pode dizer que essas ideias erram ou acertam sem conhecer verdadeiros parâmetros para isso?
3. Neste ponto é que a literatura, enquanto potencializadora da experiência humana, demanda que tal realmente seja experienciada. Para isso, como não contar com tantos conhecimentos disponíveis, sejam sobre os atros ou os átomos, do macro ao micro, diante de tantas outras possibilidades dispostas ao intelecto humano?
4. No quinto capítulo daquela obra de Dostoiévski, lê-se “É que, para entrar em ação, é necessário antes ficar totalmente calmo e não ter mais nem sombra de dúvida. E de que jeito, por exemplo, eu me acalmei? Onde estão as causas primordiais em que possa apoiar-me, onde estão os fundamentos? De onde os tirarei?” — isto tudo parece lógico.
5. Contudo, eis que prossegue na sequência “Venho exercitando a minha mente, portanto qualquer uma das minhas causas primordiais logo acarreta outra causa, mais primordial ainda, e assim por diante, até o infinito.”, concluindo “A essência de toda consciência e mentalidade é essa mesma” — exceto, talvez, aquela de René Descartes (1596-1650).
6. Descartes na sexta parte do “Discurso Sobre o Método”, quanto às experiências, “no início mais vale nos servimos apenas daquelas que se apresentam por si mesmas a nossos sentidos, e que não poderíamos ignorar, contanto que reflitamos um pouco que seja sobre elas, do que procurar outras mais raras e complicadas” — algo finito, ao certo.
7. Doravante, “a razão é que as mais raras amiúde enganam, quando ainda não sabemos as causas mais comuns, e as circunstâncias de que dependem são quase sempre tão particulares e tão pequenas que é muito difícil percebê-las” — portanto, finita aos seres humanos, exceto a Deus, como afirma Descartes, sendo Ele mesmo a causa primordial.
8. Porém, talvez o infinito na investigação das causas primordiais em Dostoiévski corrobore Descartes ao expor o autor russo que “todos os homens e ativistas naturais são ativos por obtusidades e limitações”, mas sem que isto seja uma afronta às conclusões do filósofo francês acerca de um método necessário à ciência das coisas.
9. Afinal, como está no “Diário” ou “Notas”, os “homens e ativistas naturais [...] tomam as causas imediatas e secundárias pelas primordiais e, dessa maneira, persuadem-se, com mais rapidez e facilidade do que os outros, de terem encontrado o fundamento incontestável de seu negócio e apazíguam-se, o que é crucial” — para excluirem Deus.
10. Então, se as nuvens causam as chuvas, que por sua vez geram as poças de lama, logo aquelas primeiras produzem estas mais imediatas, consumindo-se, por fim, nas secundárias, mas que aos homens e ativistas naturais, mesmo um lamaceiro é tomado por temporal, bastando as conclusões que têm sobre aquele por não verem este outro.
11. Enquanto Descartes fala de um limite necessário à segurança científica, mas sem jamais excluir a causa primordial, qual seja, Deus, estes outros “homens e ativistas naturais” excluem Deus para justificarem suas “obtusidades e limitações”, projetando-as em conclusões atingidas através do mínimo emprego da ciência já existente.
12. Noutros termos, é a conclusão que tomam esses “homens e ativistas naturais” acerca do embrião, concluindo que não poderia ser considerado ser humano pela vivência enquanto forma intrauterina, gestacional, diferir do bebê já formado em vida ultra uterina, (in)justamente por não desejarem atribuir vida como causa inicial disso tudo.
13. Se os “homens e ativistas naturais” admitissem o embrião como ser vivo tal qual é o bebê, precisariam questionar a verdadeira causa primeira, mas como isso não interessa às “obtusidades e limitações” que revelam ter, “persuadem-se [...] de terem encontrado o fundamento incontestável de seu negócio e apazíguam-se” — bingo!
14. Sendo “A essência de toda consciência e mentalidade é essa mesma”, qual seja, observar o infinito na investigação das causas primordiais, aqueles “homens e ativistas naturais” questionariam, além do bebê e o embrião, também o que é que provoca a fusão dos gametas até questionarem, por fim, o que é que provocou tal provocação.
15. Também, deixando os “homens e ativistas naturais” de admitirem os embriões como bebês, porém, noutra forma enquanto seres humanos em vida intrauterina, gestacional, ou desacreditariam na existência da alma, ou deslocariam-na para um momento no qual o feto, como dizem, finalmente transmutaria na espécie humana.
16. Se deslocam a existência da alma, como dito antes, ainda assim deveriam questionar o que é que causa ela, motivo pelo qual, levando em consideração as “obtusidades e limitações” que têm, melhor desacreditarem de que, de fato, possa existir, mas que, nisto, colocam-se em pé de igualdade com os animais (irracionais).
17. Não à toa o “Discurso Sobre o Método” procura mostrar aos que são acometidos pelas “obtusidades e limitações”, como expõe Dostoiévski, que não são iguais, homens e animais, pelas meras percepções imediatas, discorrendo Descartes sobre isso tudo ao longo da explicação metodológica, que foi colocada na quinta parte da obra.
18. Note como é que a literatura ficcional, combinada com o conhecimento da realidade, ainda assim imbuídas de filosofia, permitem reflexões que auxiliam à abordagem de problemas, que vão desde as ideias sobre concepção humana, até mesmo temas sobre a alma, aproximando Dostoiévski e Descartes, apesar de distanciados pelos séculos.
19. O que o Dostoiévski expressou pelo personagem como sendo o infinito, Descartes, ao tratar do método, descreve-O como Deus, único capaz desta plenitude. Por uma palavra e alguns poucos contextos, mas com verdades declaradas, estes dois grandes mundos, ficção e realidade, unem-se em proveito do verdadeiro. Para referenciar esta postagem: ROCHA, Pedro. A Experiência da Ficção na Realidade. Enquirídio. Maceió, 27 fev. 2025. Disponível em https://www.enquiridio.org/2025/02/a-experiencia-da-ficcao-na-realidade.html.
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