Quase todas as religiões existentes no planeta se ocuparam em buscar conhecimentos para responderem uma questão inerente ao pensamento humano mais coletivo que existe: o que acontece depois da morte? Enquanto algumas crenças explicam este fenômeno com vislumbres sobre a reencarnação, outras examinam a possibilidade de a vida persistir em outras dimensões. Visando acabar com tantas dúvidas, Black Mirror no seu terceiro episódio da terceira temporada resolve apresentar uma proposta para ninguém colocar defeito.
Evidentemente, descabe ao Enquirídio relativizar as crenças que se debruçam sobre questões tão íntimas como vida após a morte, motivo pelo qual se resumirá na abordagem final trazida nos últimos instantes do episódio mencionado, desde já alertando o leitor sobre a presença de alguns spoilers realmente reveladores.
Usuários do Netflix que acompanham a série Black Mirror no mundo inteiro já perceberam seu teor crítico através de tramas realmente elaboradas. Geralmente os episódios são desnorteantes, mas San Junipero, terceiro episódio da terceira temporada, parece não ter provocado qualquer desconforto. Será?
Buscando sanar dúvidas sobre a existência de vida após a morte àqueles que estão próximos de cumprirem suas jornadas na Terra, TCKR, empresa responsável pela criação de San Junipero, apostou em antecipar a experiência do paraíso para confortar a mente daqueles que ainda estão agarrados aos valores meramente materiais. Desta forma, morrer passou a significar transição, apesar deste procedimento estar vinculado diretamente a prática da eutanásia.
Entrando um pouco no enredo, certamente a maior crítica do episódio foi sobre o modelo de sociedade de décadas passadas, principalmente sobre o conservadorismo das condutas, quando a homossexualidade era praticamente banida da existência. Dentre várias hipóteses, acredita-se que maioria das pessoas finalmente se resolveram em San Junipero, uma segunda chance, por assim dizer, para quem não conseguiu ter uma vida realizada, inclusive para serem aquilo que não podiam enquanto presas numa realidade incompreensível, repleta de dogmas e preconceitos.
Contudo, conforme demonstrado numa das cenas, ninguém morre novamente em San Junipero, uma espécie de servidor repleto de informações, sendo cada pessoa apenas uma memória sobre si própria enquanto viva, presa num minúsculo dispositivo de armazenamento de dados. Excluindo os momentos em que o episódio aborda o universo virtualizado, somente consta como fato a necessidade da eutanásia para que a transição seja realizada, sendo este o ingresso para uma espécie de paraíso realmente eterno, porém limitado.
Pulando algumas cenas importantes para conter os spoilers e indo direto ao ponto, perceba, caso já tenha assistido, como a direção do episódio quis juntar a prática da eutanásia com aspectos meramente robóticos, quando um braço mecânico deposita as memórias recém extraídas daquela que realizou a transição para San Junipero, incluindo a música Heaven Is A Place On Earth de Belinda Carlisle como trilha sonora de momentos simbólicos demais para não serem percebidos. Este final repercutiu em fóruns e páginas de comentários positivamente, sendo isto a morada do perigo.
Nenhum episódio de Black Mirror deixou passar a oportunidade de alertar seu público sobre problemas causados pela modernidade, desde a dependência afetiva por redes sociais até mesmo a possibilidade de reviver um ente falecido através de clones e simulações de inteligência artificial. Será mesmo que San Junipero seria diferente? Quando alguém comenta que o episódio foi positivo, talvez sua tendência ao irreal já seja uma constante, tal qual a de outras pessoas que se encontram cada vez mais dependentes aos contextos virtuais para viverem.
Vale a pena assistir ao episódio para tirar suas próprias conclusões. Tecnologia pode ser solução, mas também prisão para muitos. Talvez San Junípero, enquanto simulação para idosos recobrarem a consciência, evitando os esquecimentos, seja um ótimo estímulo! Contudo, enquanto meio para se eternizar através da morte assistida, certamente o paraíso pode esperar. Imagine apenas que se isso um dia vier a ser uma possibilidade, quantas pessoas não se antecipariam para viverem num lugar perfeito? Será mesmo que até a vida pode ser relativizada?
26.6.17

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