Jan Van Eyck. O Último Julgamento. |
2. Villém Flusser, ao transmitir suas preocupações sobre o design na obra O Mundo Codificado, explica uma questão muito pertinente, recaindo no Instagram como projeto. Resumidamente, segundo o filósofo, design é “enganar a natureza através da técnica, substituído o natural pelo artificial e construir máquinas de onde surja um [deus] que somos nós mesmos”. Afirmação que certamente desagrada, em princípio, designers do mundo inteiro (como se quem aqui escreve não fosse bacharel em design), embora não ultrapasse em momento algum a linha da verdade, lembrando que autocrítica é simplesmente a maneira de tornar a sociedade melhor.
3. Partindo desta premissa, Villém Flusser adiciona: “se o design continuar se tornando cada vez mais foco de interesse, e as questões referentes a ele passarem a ocupar o lugar das preocupações concernentes à ideia, certamente não mais pisaremos em chão firme” – bravo! Noutros termos, design existe para solucionar, criativamente, problemas, sobretudo de comunicação. Assim sendo, se a intenção inicial do Instagram era permitir o compartilhamento de fotos e que, como diferencial (atrativo comercial, evidentemente), disponibilizava filtros, hoje isto é a última coisa a se pensar pelo próprio usuário, uma vez que converteram a mídia social em um campo de disputas por atenção e quantidade de engajamento, mesmo que isso não signifique absolutamente nada em termos de ganhos pessoais, pois a satisfação no começo, ao compartilhar olhares fotográficos e interagir com outros mais, agora está baseada no acúmulo de gestos digitais: curtidas, comentários, salvamentos etc.
O homem e sua criação passam a ser os grandes problemas, obrigando o filósofo a pensar no design como forma de 'substituir o natural pelo artificial'.4. Neste exato ponto, percebendo numa obra escrita no século XX, talvez Villém Flusser tenha profetizado ao dizer que “quanto mais longe vou, mais sou impedido pelos objetos de uso (mais na forma de carros e instrumentos administrativos do que na forma de granizo e tigres). E na verdade sou duplamente obstruído por eles: primeiro porque necessito deles para prosseguir, e, segundo, porque estão sempre no meio do meu caminho”. É uma filosofia paradoxal, mas sua síntese torna a compreensão mais fácil: “quanto mais prossigo, mais a cultura se torna objetiva, objetal e problemática”. Como isso tudo se relaciona com o Instagram? Simples! Quando esta mídia social surgiu, possuía um objetivo muito prático e imediato, resolvendo problemas básicos como permitir que outras pessoas, familiares, amigos, colegas de trabalho, pudessem ser mais íntimos, por assim dizer. Vale pensar que alguém, morando longe dos pais (talvez num intercâmbio internacional), utilizasse aquela plataforma de compartilhamento de fotos para permitir um contato mais imediato, quase que em tempo real, quando os momentos ficavam visualmente registrados e acessíveis no minuto do evento. Neste sentido, o problema ainda era baseado numa ocorrência experiencial, cabendo ao design, ou seja, a solução concreta (no caso, o Instagram), possibilitar a aproximação das experiências. Adequando àquilo que Villém Flusser colocou, o problema chamado “necessidade de se aproximar” demandou a invenção do Instagram (para não falar do ICQ, mIRC, MSN, Fotolog, Orkut etc.), porém, agora, este mesmo “objeto de uso” se tornou um impedimento, tanto pela necessidade que atualmente é colocada (interação pessoal, divulgação profissional, atualização informacional dentre tantas), quanto por precisar saber exatamente como cumprir os requisitos para alcançar os objetivos dentro da mídia social. Por isso mesmo que Villém Flusser mencionou que os problemas trazidos pelo design estão mais na forma de coisas já produzidas pelo homem do que aquilo que realmente existe, lembrando que escassez de alimentos, animais selvagens ou chuvas torrenciais eram preocupações e problemas reais no princípio da humanidade. Só que, a partir daí, o homem e sua criação passam a ser os grandes problemas, obrigando o filósofo a pensar no design como forma de “substituir o natural pelo artificial”, sobretudo para “construir máquinas [assim como aplicativos digitais] de onde surja um [deus] que somos nós mesmos”, e fazendo do raciocínio menos filosófico e mais teológico na medida em que uma nova cosmovisão é inaugurada.
5. Criando o homem o seu próprio mundo virtual, utilizando apenas aquilo que compreende, torna-se um deus daquele minúsculo espaço, onde interage de maneira infinitamente limitada com todos os demais aderentes ao seu modelo de conduta. Porém, a compreensão meramente humana é ontologicamente individualizada, semioticamente não convencionada e sociologicamente problemática, não valendo, sequer, discorrer a respeito disto, salvo para dizer que, nas mídias digitais, cada qual pensa como quer, mesmo na hipótese da derivação sob influência. Assim sendo, inexiste uma homogeneidade que possibilite a comunicação dentro do Instagram, motivo pelo qual as pessoas terminam buscando só aquilo que desejam ver, apesar do algoritmo, insistentemente, potencializar conteúdos não solicitados. Se as relações se restringissem ao Instagram, talvez este texto perdesse completamente o sentido, mas não é isso que acontece, pois “se as questões referentes a ele [ao Instagram] passarem a ocupar o lugar das preocupações concernentes à ideia”, ou seja, onde todo mundo pensasse segundo suas influências ou conclusões particulares, próprias das ideias que atingiram, mesmo que momentaneamente, “certamente não mais pisaremos em chão firme” – e é o que acontece atualmente. Ainda nesta linha, Villém Flusser realiza uma crítica nos seguintes termos: “o progresso científico e técnico é tão atrativo que qualquer ato criativo ou design concebido com responsabilidade é visto praticamente como um retrocesso”. Apenas para ilustrar a ausência de preocupação pela equipe de desenvolvimento do Instagram, em 2019 a mídia social informou que deixaria de exibir a quantidade de curtidas que as postagens recebem, ficando ocultas aos seguidores, mas não aos proprietários de perfis. Esta alteração se dava em resposta ao clima de competição em busca de curtidas ao passo que tentava resgatar o foco das pessoas nas histórias que pudessem compartilhar, ou seja, retornar ao seu objetivo inicial. Não demorou muito para que o Instagram voltasse a oferecer as visualizações de curtidas, significando, como se percebe, que algo maior do que a própria equipe de desenvolvimento falou mais alto, concluindo o filósofo a sua crítica: “a situação da cultura está como está justamente porque o design responsável é entendido como algo retrógrado”. E a crítica não para por aqui.
6. “Os objetos de uso [como o Instagram], afinal de contas, são obstáculos de que necessito para progredir e, quanto mais preciso deles, mais os consumo”. Basta notar que algumas pessoas simplesmente não conseguem deixar a mídia social de lado, passando a consumi-la para satisfazerem suas necessidades de progresso, sendo este entendido de múltiplas formas de progresso: maior entretenimento, maior comercialização, maior visibilidade etc. Disto Villém Flusser prossegue causando a seguinte reflexão: “juntamente com os utilitários consumidos, o projeto que os lançou no caminho é extinto. Eles perderam a forma sobre eles projetadas; são deformados e jogados fora” – maior descrição a respeito das alterações acontecidas no Instagram, quando, abandonando o objetivo inicial, passou por uma deformação ao ponto de se tornar um Frankenstein de Facebook, Snapchat, Pinterest etc. Agora imagine as ideias primárias dos usuários, que criaram suas contas inicialmente para objetivos delimitados e que, depois de um tempo, percebem no Instagram um ponto retórico de discursos que transbordam da plataforma de compartilhamento ao mundo concreto. Certamente os problemas decorrentes das influências estão patentes, visivelmente expostos para quem quer enxergar.
7. Villém Flusser acreditava que “essa tomada de consciência da efemeridade de toda criação (inclusive a criação de designs imateriais) contribua para que futuramente se crie de maneira mais responsável, o que resultaria numa cultura em que os objetos de uso [Instagram, no caso] significariam cada vez menos obstáculos e cada vez mais veículos de comunicação entre os homens”. Porém, alguns anos depois do lançamento de sua obra, ao menos no Brasil, esta consciência ainda não foi atingida, sobretudo por conta do que o próprio filósofo questionava: “a moralidade das coisas? [...] As facas, por exemplo, tinham de ser concebidas para cortar bem. [...] O ideal do construtor era pragmático [...]. Considerações morais ou políticas raramente entravam em jogo. As normas morais foram fixadas pelo público (por uma instância supra-humana, por consenso ou por ambos). E tanto os designers como os usuários do produto estavam submetidos a essas normas, sob pena de serem castigados [...].” Perspectiva que se correlaciona com as transformações do Instagram de maneira muito similar, uma vez que são os usuários, perante aquilo que anseiam como progresso, que modificam o sentido da coisa ao ponto de a própria equipe de desenvolvedores ser penalizada (vide o caso do botão de curtir, uma vez ocultado, mas visível novamente) ou mesmo perfis, pessoas por detrás da interface, serem “canceladas” por grupos ideologicamente opostos, mesmo quando as informações compartilhadas por aqueles estejam dentro das regras da comunidade (uma espécie de constituição daquela mídia social) – decorrências nefastas para premissas divertidas.
8. Finalmente, Villém Flusser, concluindo sua preocupação, revela que “o eventual desinteresse dos designers por essas questões poderá levar à total ausência de responsabilidade”, quando materialmente falando o progresso das mídias sociais, principalmente o Instagram, torna-se um problema de foro internacional, passível de regulação legislativa, sendo, portanto, compreendido pelo Estado não apenas como uma plataforma de compartilhamento, mas algo mais elevado, capaz de concorrer com a própria estabilidade legal de um país. Como derradeiro alerta, desabafa o filósofo: “se não formos capazes – além de toda ideologia – de encontrar minimamente um caminho de aproximação a uma solução dos problemas éticos do design [de soluções como Instagram], [...] fenômenos parecidos haverão de representar unicamente os primeiros estágios da destruição e da autodestruição”. Vislumbre de um futuro, evidências do próprio presente.
9. Comunicação ainda é a área mais descampada que existe, filosoficamente falando. Poucas filosofias foram desenvolvidas com tamanha precisão profética, antecipando resultados para além do campo de visão, bloqueados naquela época pelos limites da tecnologia – Instagram não era sequer uma ideia! Porém, aparentemente tudo no mundo se torna negócio, donde o símbolo econômico ultrapassa em valor as indexações humanas, ou seja, pouco importa quem seja, contanto que renda o lucro, mesmo que não seja exatamente financeiro, mas ideológico ou político. Sorte, mesmo não concordado integralmente, haver um Villém Flusser para ponderar a respeito daquilo que é anunciado como solução, embora seja o mesmo problema de sempre, reparando que, da sua contribuição, inúmeras observações concretas podem ser analisadas tendo como baliza percepções que se sustentam quase que de maneira aritmética, bastando conferir a realidade posta com o gabarito apresentado. Para referenciar esta postagem: ROCHA, Pedro. Premissas Divertidas; Decorrências Nefastas. Enquirídio. Maceió, 01 set. 2021. Disponível em https://www.enquirídio.org/2021/09/premissas-divertidas-decorrencias-nefastas.html.
Postar um comentário