19.4.25

Mentiras à Parte, Ela Foi Boa

Esta é a tese a respeito da Revolução Francesa: mentiras à parte, ela foi boa. É o infeliz remate acerca deste evento que mudou o mundo e que é ensinado em todas as escolas como uma coisa boa, necessária, embora não entendam que ela consiste justamente na causa de tantos problemas na atualidade.
Nicolas Antoine Taunay. O Triunfo da Guilhotina no Inferno.
1. Repudia-se, de antemão, as escolhas da Editora Unesp à capa da edição por ela publicada em 2007 de “A Revolução Francesa Explicada à Minha Neta”, de Michel Vovelle (1933-2018), trazendo uma gravura da guilhotina associada à fração azul da bandeira da França, por mais que seu autor, revolucionário inveteradamente apaixonado, tenha amado essa ideia. Imagine só um livro sobre inquisição, cujas cores no front lembrassem a bandeira do Vaticano e trouxesse sobre o branco (ou em cima do amarelo) a imagem do potro (ou cavalete), utilizado para torturar os hereges? Os franceses não podem ser associados ao instrumento utilizado para cometer terríveis assassinatos, assim como julgar os católicos pelas ações horrendas e anticristãs de determinados inquisidores é igualmente incabível — que por uma revisão tragam uma mensagem mais condizente ao porte desta instituição.

2. Em suma, Vovelle, neste livro, explica à própria neta como ele ama ser revolucionário, remontando a história do ápice do iluminismo como se fosse um passeio no bosque: “[...] e é injusto acusar os revolucionários de haver cometido mais do que um excesso lamentável (como diríamos hoje), um enorme erro.” (pág. 57); “Quantos mortos? Na guilhotina, sem dúvida por volta de dezesseis mil, mas as execuções coletivas devem aumentar bastante esse número. Aproximadamente 130 mil só na Vandeia, embora se diga que foi muito mais.” (pág. 75); “Essa Revolução na história continua sendo, também, a nossa Revolução, e é por isso que eu a amo. [...] Mas o sonho e a necessidade de mudar o mundo continuam intactos. Pela história da Revolução Francesa, é essa mensagem que transmitimos a vocês, e a qual deverá ser transmitida às futuras gerações.” (pág. 101, última, por sinal).

3. Esta obra, qual seja, “A Revolução Francesa Explicada à Minha Neta”, não foi escolhida sem propósito, uma vez que outro livro do autor, certamente mais acadêmico, poderia ser melhor, porém, academicamente, apenas. Escolheu-se este exatamente por ser supostamente dirigido à alguém que ele amaria mais do que as ideias revolucionárias, motivo pelo qual trataria do assunto sem mentiras. Mentir, ele não mentiu, mas não contou tudo, pois omitiu. E o que foi omitido neste “diálogo” aqui, em um trabalho mais explícito, intitulado “A Revolução Francesa Contra a Igreja”, ele fez questão de afirmar. Há distorções, que bem poderiam ser consideradas mentirosas, que não passam pelo mero crivo da lógica, tornando-se absurdamente contraditórias pela curta distância entre “Em busca de armas, no dia 14 de julho os parisienses invadiram a Bastilha, antiga fortaleza medieval que se tornara uma prisão do Estado.” (pág. 31) e “Uma multidão armada, composta sobretudo por artesãos e populares, além de soldados – os guardas do rei -, dirigiu-se à Bastilha: o diretor recusou-se a abrir os portões, houve uma batalha que provocou numerosas mortes entre os atacantes, mas eles acabaram se impondo e assassinando o diretor.”(pág. 32). Ora! Se estava “quase vazio” aquele castelo, como disse à neta, provavelmente não era preciso uma guarda que pudesse resistir, ainda mais pelas baixas que alegou. Se tinha armas e pólvora, também eram em menor quantidade do que já havia sob posse dos revolucionários. Afinal, quem foi morto no fim das contas foi o tal diretor de lá, que não deixou de cumprir seu dever. Ao certo, essas investidas foram necessárias para caracterizar a destruição da monarquia, criando um símbolo idealista, que por sua vez, segundo aos que ainda dizem “não gostamos de sangue”, estaria sob domínio da Igreja Católica, uma vez que o rei era constituído pela graça de Deus, ficando à revelia dos desejos do Romano Pontífice – o que é até lógico de se concluir, embora por equívoco.

4. Na cabeça de Vovelle, o rei foi o traidor do povo da França, mas que Maximlien François Marie Isidore de Robespierre (1758-1794), quem pediu a morte do monarca por traição (forjada, cogita-se) e criou o Comitê de Salvação Publica, inaugurando o período do “Grande Terror” no intuito de perseguir os adeptos da “contrarrevolução” (ao se defenderem, certamente), questionado pela neta se “Apesar do Terror e de todo o sangue derramado, você tem pena dele?”, era sim digno de pena, pois “[...] não foi um ditador como disseram. Com a convicção e a retidão de ‘Incorruptível’, ele foi a alma da Revolução em sua fase mais terrível.” (pág. 83). Ele faz parecer a Revolução Francesa como se fosse um foguete, donde os estágios, independentemente de bons ou ruins, apenas cumprem funções voltadas ao resultado, que é pôr qualquer satélite na órbita da Terra, assim como um novo regime de governo, qualquer que fosse ele, contanto que destruísse o catolicismo e o “capacho” de Deus, como viam (e ainda veem) a figura de todos os soberanos declarados católicos.

5. Robespierre, que era deísta (um tipo de ateu, para todo efeito), segundo Vovelle, entendeu aquilo que estava por trás de um “culto à razão” ao se opor na Convenção do ano de 1793 ao ateísmo pretendido pelos opositores em face de todas as religiões. Mas veja por qual motivo: “[...] para ele, era fundamental a existência de um Ser supremo, capaz de recompensar os bons e punir os maus para que a Virtude triunfasse. Essa virtude era a única justificativa para aplicar o Terror: pois, o que é Terror sem Virtude? Você entende seu raciocínio, ou melhor, sua crença?”. Ainda bem que Gabrielle, que não seria possível afirmar ter tido tal conversa com seu avô, responde “Estou tentando, mas não percebo como isso pode acabar... O que ele vai fazer?”. Retornando o autor à explicação: “Robespierre conseguiu provar na Convenção o reconhecimento da imortalidade da alma, o que desagradou a muita gente. No dia 8 de junho de 1794, ele celebra em Paris e em toda França a festa do Ser supremo, sem dúvida uma das mais belas de toda a Revolução, e sua apoteose... mas seu destino já estava traçado”. Todas estas citações se encontram na página 81 de “A Revolução Francesa Explicada à Minha Neta”, conforme a publicação de 2007 da Editora Unesp. Significa que, aos iluministas, religião é apenas algo utilitário, responsável pela alienação das massas, donde “a religião é o ópio do povo”, como disse Karl Marx (1818-1883), que por sua vez deverá ser controlada pelo Estado na intenção de cumprir somente uma função social, assim como pensam os teólogos da libertação sobre a Igreja Católica. Também é preciso esclarecer que não acreditaram coisíssima alguma sobre a “imortalidade da alma”, quando, para isto, dispunham de variadas explicações teológicas ou filosóficas, conforme se vê no “Discurso Sobre o Método”, de René Descartes (1596-1650), quem teve seus restos mortais disputados em alguma dessas convenções para irem ao Panthéon de Paris, embora se encontrem na Igreja de Saint-Germanin-des-Prés. É que o iluminismo é essencialmente ateísta, mas que por uma conveniência de utilidade, toleram os deístas ou mesmo os “cristãos”, certamente hereges ou no mínimo cismáticos.

6. E o pensamento revolucionário, como se pode entender em A Mente Revolucionária, se dá primeiramente pela total dominação dos sentimentos por uma vontade irracional de mudança, mas não por vontade pessoal ou visando apenas si mesmo, mas das coisas alheias que não são compatíveis com aquilo que o ser imagina nos limites do próprio conhecimento. Isto tudo, para resumir, expondo como aquele o autor sabe, acaba em crença. Observe como Vovelle intercala a linguagem de maneira romantizada ao explicar os derradeiros momentos de Robespierre, antes de dizer que teve pena dele: “[...] no dia 9 de Termidor, na Assembleia, impedido de falar, o ‘Incorruptível’ tem sua prisão decretada. Poucos permaneceram fiéis a ele. Com seus partidários, ele é guilhotinado no dia 10 de Termidor. Desaparece um importante personagem e todo um período da Revolução chega ao fim.” (pág. 83). Ao invés de falar do mês, neste ponto, ele se refere ao espaço de tempo entre os dias 19 de julho e 17 de agosto usando o termo “Termidor”, próprio do “Calendário Revolucionário Francês”.

7. Uma obra que mais parece a abdução do demônio à inocente, uma vez que Gabrielle se indigna a cada lição dada por seu avô, especialmente ao mencionar as execuções por guilhotina como sendo algo normal, beirando a trivialidade. Mas faz isso por uma ”fé” que ele encontra na figura do Estado, que não passa de crença sintética, utilitária, embora integralmente requintada daquilo que também se observa em cultistas. Aliás, Albert Mathiez (1874-1932), historiador francês, ateísta, quem tomou pelo stalinismo um aparente desgosto enquanto fizera parte do Partido Comunista Francês, ao menos ao longo de meros dois anos, talvez tempo suficiente para isso, resolveu se posicionar em “As Origens dos Cultos Revolucionários” sobre o que é “religião” e o motivo dos revolucionários serem “religiosos”. Usando um conceito dado por Émile Durkheim (1858-1917), qual seja, “longe de ser o que há de fundamental na vida religiosa, a noção de divindade é, na realidade, apenas um episódio secundário”, relaciona o pensamento da revolução às concepções que procuram ligar este a algo revestido de religiosidade. De fato, pode-se dizer que até mesmo o ateísmo funcionou para abrir espaço às “religiões naturais”, isentas de catolicidade ou de qualquer outra doutrina, contanto que fossem inofensivas ao Estado, corroborando o surgimento de inúmeras seitas, cujos adeptos podem professar um “Deus do meu coração, Deus da minha compreensão”, sem que possam impor dogmas, exceto a flagrante descrença. Significa que aqueles que iniciaram todo esse processo desejavam o retorno de supostas práticas pagãs, anteriores à instituição da Igreja de Cristo? Seria algo lógico, mas não sensato, mesmo diante de grandes indícios mais interessantes, como no caso de os enciclopedistas, responsáveis por reescreverem a história da Europa por completo, praticamente (dentre outras coisas), priorizarem um deísmo em face de um Deus que tem uma fundação própria na Terra. Mesmo em declarações de direitos é possível identificar elementos de linguagem que remetem ao misticismo advindo da cultura forjada ao longo do Renascentismo. Para eles, importava tão somente a destruição da fé, que por uma série de erros fatais do clero e laicato, como em certas inquisições ou no gravíssimo problema da simonia, confundiu-se com algo que não parece outra coisa além do poder. Ora! Desta forma, entender que eles não pensaram duas vezes para tratarem o catolicismo como rival não é tão difícil assim.
Assim é que a mentalidade de um descrente (ou crente por razões utilitárias), limitada ao conhecimento miserável que acredita de algum modo possuir, ainda assim totalmente materialista, consegue compreender o mundo: como se fosse um mero jogo de interesses particulares.
8. Ao menos se torna patente a gênese de um poderio maçônico na Revolução Francesa, seja pela reunião de membros em lojas, como pela quantidade de elementos que referenciam uma nítida adesão ao misticismo enquanto deísmo utilitário, embora ao longo do tempo tenha se tornado algo beirando a inutilidade, sendo um dentre os motivos que levam alguns maçons na atualidade buscarem um complemento espiritual em várias seitas, outras religiões abraâmicas, orientais, ou até na Igreja Católica, causando sérias complicações aos católicos. Outros, vítimas desse poder revolucionário conquistado pela maçonaria, sentindo-se desamparados da espiritualidade tomada pelo ateísmo, procuram amparo nas muitas (des)crenças, forjadas nos mesmos moldes do utilitarismo. Ao contrário do pensamento de Mathiez, que em seu tempo alega não ter encontrado escritores que observassem esse fenômeno sem que fizessem somente a apologética de sempre na defesa da fé, ao menos desde o início do século XX já se observam em determinados trabalhos, incluindo os acadêmicos, questionamentos que desbancam muitas tramas da história de fantasia contada por Vovelle à Gabrielle. E o que é incrivelmente mais explícito na atualidade é o fracasso do sistema democrático de governo, que por derradeiro vem aplicando na população altíssimos impostos sobre absolutamente tudo para preservar um novo tipo de monarquia. Ora! Se na época do Rei Luiz XVI havia membros corruptos na corte, de fato, bastaria que fossem tirados dos cargos — poder-se-ia pensar nisto desde então. Afinal de contas, França só passa a existir por força de outros monarcas anteriores contra agressores que desejavam dominar ou arrasar aquela cultura. Ingenuidade! Este tipo de pensamento não caberia na mente de um revolucionário, pois se há um poder, então que seja dele. Se algo pode se transformar (leia-se passar pelo processo de subversão) em objeto de disputa, melhor garantir estrategicamente a preponderância da minha equipe (ou loja, ou partido político, ou exército etc.) no intuito de vencer. Assim é que a mentalidade de um descrente (ou crente por razões utilitárias), limitada ao conhecimento miserável que acredita de algum modo possuir, ainda assim totalmente materialista, consegue compreender o mundo: como se fosse um mero jogo de interesses particulares.

9. Os românticos que defendem a Revolução Francesa, alegando que ela foi necessária a inúmeras justificativas que podem afirmar ou conjecturar, geralmente com exemplos materialistas, como poder “fazer coisas que só um rei poderia realizar”, confirmam parcela do trabalho de Mathiez e o que é possível afirmar sem dúvida alguma acerca do “espírito revolucionário” ser uma espécie de religião isenta de Deus, facilmente convertível em seitas de denominações e aspectos variáveis, contanto que sob completo domínio do Estado, que por sua vez deverá dizer o que é moral, supostamente, através das leis, ainda que não contemplem os legítimos desejos das massas (para usar a linguagem do marxismo), mesmo que formem a maioria contra os interesses dos governantes — quando passam a utilizar a “máquina repressiva” para dissuadir as contrarrevoluções, neste ponto caracterizadas pelos iluministas modernos pela mera oposição política. Ou seja, além da democracia praticada ser uma piada de muito mal gosto em vários países, opor-se ao governo se torna um exercício perigoso, especialmente onde a marca da guilhotina se tornou um símbolo ao encorajamento da agressividade contra quaisquer mudanças, ainda que sejam constitucionalmente determinadas a acontecerem. Enfim, trata-se de um assunto que demanda um conteúdo específico. Neste ponto, visando finalizar esta publicação para deixar os demais aprofundamentos para estudos futuros, valeria a leitura de alguns artigos deste Enquirídio, mas se lhe fosse viável fazer a leitura de apenas um, então que possa ler De Gênio à Eugenista.
    Para referenciar esta postagem:
ROCHA, Pedro. Mentiras à Parte, Ela Foi Boa. Enquirídio. Maceió, 19 abr. 2025. Disponível em https://www.enquiridio.org/2025/04/existe-uma-historia-secreta-do-mundo.html.

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